terça-feira, 30 de agosto de 2011

Poema: Assalto


ASSALTO



A poesia assalta o muro como a hera,
rizoma no que sobe lenta,
furando em esforço sutil
o silêncio que ninguém escuta.

A poesia assalta a lua
pendurada na linha
que divide o céu do mar.
Tem tudo nas mãos -
na tênue divisão do mundo -,
quando as plêiades
e as anêmonas
dançam juntas
procurando devorá-la.

A poesia assalta bancos de praças
e foge pelas ruelas de sereno e frio,
assalta as massas, esquinas de rios,
desertos, delírios, desejos
e as flores de um canteiro.
A poesia se tenta em arrastão,
lenta assalta os prédios altos.
Por dez mil janelas cinzas,
adentra o espaço entre frestas
e presta invade quartos.

A poesia assalta o poeta
pela alma, pela calma, pela cama -
refém na hora do sono -,
cavando fundo o estado alfa.

A poesia assalta a folha em branco
e por descuido não vê
a armadilha surpresa:

O poeta se põe a escrever.
A poesia, por fim,
é presa.

Marcelo Asth

Poema: Caleidoscópio


CALEIDOSCÓPIO



Este atrito de tempos
onde possuo buscas
e nada se atém...

Estou em cima da hora -
daqui melhor vejo tudo:
– O delírio deste mundo
é parar por um instante.

Líquida modernidade,
escorre fluida entre dedos.

Agarro meu vácuo
e vago vazio -
meu medo.
Inócuo vagueio.

Passeio por tantos;
muitos outros sendo.
Ao que reflito,
a mim me divido:
tonteio de caleidoscópio.

Meu ser se quer solidez,
mas tudo me corta
e devoro tudo -
Identidade antropófaga:
me centrifugo.

Há tanta coisa no mundo
que não mais me escolho.

Sabendo-me solidão,
solidariamente me dôo -
desejo de cingir laços
e outros vestígios frouxos...

Há tanto mundo nas coisas
que, por hora, me encolho.

Escorro.

Minha aura imanente,
porosa me deixa passar.
Fragmento minha essência:
Quando só, nunca aconchego.

Em companhia da ausência
rumino meu desassossego.

Marcelo Asth

domingo, 28 de agosto de 2011

Poema: Penso

PENSO

Ando tanto te pensando
que me deixo num canto.
E meu pensamento te ama
pelo desejo de se refazer,
eternamente.
Sei de você
por querer saber quem sou.
E te sonhando
crio um infinito
que sempre visito.
Penso amor.

Marcelo Asth

Poema: Dia

DIA

Meu cotidiano: você,
meu primeiro raio do dia,
certeiro no olhar da promessa.
Companhia de café quente,
cara amassada,
voz baixa de carinho exato.
Tarde de abraço quente,
cabeça no colo,
expressão de um pensamento.
Lusco-fusco de riso frouxo,
dança a dois de música louca.
Noite de segurança -
passeio nas linhas das mãos com dedos
e acabo viajando 
pela totalidade de seu corpo.
Meu cotidiano: você,
meu último suspiro do dia,
certeiro no ouvido de uma festa.

Marcelo Asth

Poema: Algo

ALGO

Algo
maior que tudo
maior que um verso montado
mais denso que um berro na boiada
mais molhado que o fundo de um rio d'água
mais longo que uma distância entre dois planetas
menos tenso que uma tarde feita de mágoa
menos ronco que um homem na cama
menor que um jovem coroado
menor que nada
algo.

Marcelo Asth


sábado, 20 de agosto de 2011

Poema: Enigma

ENIGMA



Nos roscofes, que a hora bata
Uma dúzia das badaladas!
Em série, os nefelibatas
Largam pistas pelo solo...
Avantesmas obumbrados
Pelo fog à meia-noite
Visitam o vetusto parque
A deleitar-se em convescotes.
Evadem prestos, tão céleres
Das catacumbas de homizio,
Que abrolham aragem em fúria
Na pressa de suas vertigens.

Favônios sopros de Zéfiro
Fugidios em vigília,
                          Caçoam dos que não sabem,                          
Abafados no significado.
Espectros desbotados
Com suas íris rubicundas
Estão vagando obtusos
Em rastros de malacachetas.

Vê-se tão nítida
A arruaça deste bando,
Que os patuscos, vez em quando,
Assombram com fogo-fátuo
As vítimas que, pelas fenestras,
Miram a rua e secam em insônia.

Ruando recônditos
Em festas nefastas,
Assombram ventando
E cantando nas frestas.
Se manifestam nesta forma
Se infestando deste modo,
Imbuídos de frêmito
E embebidos de espasmos.

Os encontros dos fantasmas
São meras balbúrdias frugais,
São puras reminiscências
De outros tempos atrás.
Soltos sem refreamento
Vagam donos do recinto,
Ignoram acolhimento
Zombando nada sucintos.

São rapazolas perdidos,
Insanos no éter do tempo,
Fedendo ao mofo dos séculos,
Cometendo sons fatídicos
Em místicos mistifórios,
Antes mesmo do dilúculo,
Em ridículos ruídos fluídicos.

Tombai as tumbas por hora –
Seus nomes não dão pra bispar!
Soturnos em pânria e porre;
Nuviosos vapores de ar.
São mitigados dos livros,
Mastigados pelas traças
Dos registros desta urbe
Perturbada de arruaças.

E ao pó por regressarem,
Os alfarrábios volumosos
São arcanos tão despidos
Que enfadam estudiosos.
As esfinges exploradas
Patenteiam-se maiores.
As cascas que as eras soltam
Já eram nos arredores...

Proliferam em demasia
Em gabolice farreada,
Falando as línguas mortas -
E ninguém entende nada.
Usando as palavras prolixas,
Pedantes almas penadas
Usavam, assim, bem antes,
Palavras já desusadas.

O enigma está tácito.
Taciturnos devem olhar
Para além dos dicionários
E com táticas decifrar.
O verbo virou esbórnia.
Falta apenas desvendar-se
E vender a onírica passagem
Desta cancha tão sombria.

Nos campos dos cemitérios,
Quem anda por lá levita
Acima do deletério
Das fumaças das ruínas.
Por isso é que não tropeçam
Nos mistérios das latrinas,
Que fétidas servem de catre
Quando alastra a matina.

Logo brota o sol e desponta
Os raios que o silêncio evoca.
Cessam a algazarra por hora,
Retornando às suas sombras.
Dormem esporos na alfombra
Despedindo-se no escombro...
Se cobrem pasmos de assombro
Quando estoura a aurora.

Salatiel Brüm

Poema: Jogos de Guerra


JOGOS DE GUERRA

Quando seu corpo no meu,
Descubro um campo de batalha,
Onde por fim caímos mortos
Na tática tátil dos corpos.

Ao me despir ao seu dispor,
Tiro à queima roupa.
Combate corpo-a-corpo,
Tudo apalpa e nada poupa.

Sou dado, soldado seu.
Confuso de que lado ataco,
Avanço e recuo a tropa
E trôpego pelejo fraco.

A investida aguarda.
Da acometida me salvo.
Ataque à retaguarda!
Seu corpo nu é alvo...

Entocado em sua trincheira,
Em sua pele estrangeira,
Rastreio sem mapa seus rastros.
Alastro-me dando bandeira,
Hasteio e ali finco o mastro.

Meu exército exercito
Explodindo nossas bombas
De anatômicos cogumelos atômicos.
Exploro seu país indômito
E excito tudo o que fito.

Renda-se na emboscada
Desta minha embocadura -
Que demarco com meus dentes
As áreas que a boca procura.

Mordente em arrepio,
Torno a te definir no sexo -
Que crio contorno convexo
No bojo do seio macio.
Quando amando,
Mordo-o em cheio.
Sei-o antes meio vazio...

E vendo os relevos lanhados
E desvendando sua mata,
Você me revira de lado,
Revida e contra-ataca.

Tomba logo o corpo e sente
A hecatomba em combate -
Que o jogo amoroso da gente
É guerra que acaba em empate.

Marcelo Asth

Poema: Soma


SOMA

Nosso amor tem brilho –
Deste que trazem os grandes astros.
Amo, pois que, ao senti-lo,
Quando a dois, somente cintilo.
E me basto.

E pensar: amar a um, sendo dois.
Ou então: amar a dois, sendo um.
Que conto fator em comum
Em evidência, agora e depois...

Que somos sonho, soma, alma,
Amálgama, riso, rizoma,
Redoma, gozo e calma –
Carinho ímpar de um par.

Quando um abraço nos toma,
Em laços e em nós nos afaga,
O encontro é o que interessa
Pra téssera complementar.

Fico surpreso enquanto
Preso em seu braço,
Pois não tem preço
O seu abraço que eu prezo.
Um meio, um quarto, um terço,
Inteiro parece que rezo
Quando em você me reparto.

Seu sussurro, trinta decibéis...
Férteis de poesia.
No escuro oram-me fiéis
E o poço do ouvido arrepia –
Se eu criasse amor nos poros,
Suaria.

E se o suor na pele é sal
E sede continua tendo,
Se brasa quando junta ao fogo,
Quente continua sendo,
Se água pinga no rio
E o corixo ainda escorrendo,
Eu em você somos brilho,
Corisco nos astros crescendo...

Eu durmo sob o dossel
De seus cachos negros,
Querendo suas noites a mais.
Do céu tudo é segredo:
Gigantes siderais espelhos,
Testemunhas de sinais.
Que somos soma, carne e unha,
Pêlo, apelo, aperto e paz...

Marcelo Asth

domingo, 14 de agosto de 2011

Poema: Acalanto


ACALANTO
a Borlido Elias, meu pai
Boa noite.
Boi da cara preta.
E a voz soava grossa
Feito trovão.
E era o abrigo da noite.
E era o hipnótico ingresso.
E era a fronteira dos sonhos
Nos borbotões de minha infância.

Canto o acalanto do tempo.
A boca secreta do espelho
Verte o alento da memória:
Não sei de que sonho saímos...
De que trecho da história?
Ralenta a cantiga nossa
Como escansão mastigada...

Seu cabelo tingiu-se de preto
Como a noite e a cara do boi.
Brincamos de pai-e-filho.
A panela de pressão
Chia cheia de domingos.
Ainda estamos antigos.
O ainda não sei foi...

Subo em suas costas
De cavalo de brinquedo
E léguas andamos juntos
Cruzando frios relevos,
Sem ter medo das caretas
Das montanhas de Friburgo.
O galope soa forte,
Grosso feito trovão.
Ralento a nossa cantiga.
Você segura minha mão.

E antes que seu filho durma –
E que você durma também –
Lá vamos nós seguir outros sonhos,
Cantando pra bem mais além...


Marcelo Asth